(1ª PARTE)
O CRÉDITO
A sociedade contemporânea pode ser qualificada como sociedade de consumo. O enorme volume de bens fabricados e comercializados e serviços prestados diariamente se deve, de um lado, à incessante inovação das utilidades aliada a renovados meios de divulgação, cada vez mais agressivos, que cativa a cobiça humana e, de outro, às facilidades da obtenção e concessão do crédito, de modo a popularizar, a juros às vezes altos, o acesso a bens e serviços. Tudo dentro do mais genuíno espírito do usufruir hoje e pagar amanhã...
O consumo, na escala em que se encontra, não seria possível, portanto, sem o crédito. E há nisso dois sentidos: o crédito concedido às empresas e o crédito concedido aos consumidores.
Na atualidade, há inúmeras modalidades e formas de linhas de crédito oferecidas pelos próprios comerciantes, por financeiras, bancos e instituições creditícias, de consórcio etc.
O termo crédito vem do latim creditu e implica na noção de confiança, de segurança de que alguma coisa é verdadeira. Assim, para se abrir crédito a alguém, é preciso acreditar na intenção e capacidade de pagamento da pessoa. Antigamente, essa crença se baseava nas posses de quem requeria crédito, mas, muito também, em sua reputação, em seus antecedentes, conhecidos pessoalmente pelo prestador do crédito, chamado prestamista. Na atualidade, essa confiança é construída através das análises de risco, que continua levando em conta os antecedentes econômicos da pessoa, mas, com o grande incremento das atividades econômicas e a consequente impessoalidade das relações, isso se faz através da composição de cadastros, fornecimento de documentos e pesquisas nos serviços de proteção ao crédito.
Os dois elementos básicos do crédito são a confiança e o tempo.
A economia atual se assenta, em grande medida, nas operações realizadas mediante a concessão de crédito, já que a vida moderna é imediatista e não tolera a postergação de objetivos e resultados. E não só os particulares – empresas e indivíduos – se sujeitam a negociações envolvendo operações de crédito, mas, até, o Estado, o que faz surgir o crédito público, que é a permissão que o Estado tem de captar empréstimos mediante a promessa de restituir os valores no futuro, como no crédito geral.
Assim, quando observamos o modus vivendi da sociedade contemporânea, é fácil constatar a importância que o crédito toma na vida de todos nós, em maior ou menor grau: desde os grandes conglomerados econômicos até o simples camponês. Por isso, a matéria dos títulos de crédito é uma das mais relevantes, na atualidade, no estudo do direito empresarial.
A IMPORTÂNCIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO E SUAS VANTAGENS
Os títulos de crédito nasceram de uma necessidade específica dos comerciantes mas, por sua eficiência, seu uso acabou por transbordar os limites da seara mercantil para popularizar-se.
Com o incremento da produção, o crédito surgiu como fator de viabilidade do crescimento das iniciativas de produção e comercialização.
A abertura de um crédito, seja em negociação que envolva o fornecimento de um produto, a prestação de um serviço ou o adiantamento de quantias em dinheiro, pode ser documentada de mais de um modo: através da criação de um título representativo, de um contrato, de uma escritura de confissão de dívida, por exemplo. A necessidade de documentar a concessão do crédito, por sua vez, existe em virtude da necessidade de se provar a negociação e suas condições e medidas, para a futura cobrança.
Assim, cabe às partes envolvidas no negócio determinar o modo de documentação do crédito concedido. Mas os títulos de crédito são mais vantajosos nessa documentação, quando comparados a outros meios. Isso porque os títulos de crédito apresentam a enorme vantagem da agilidade em três momentos cruciais para os empresários e para todos nós: no momento de sua documentação; no momento de sua eventual cessão e no momento da cobrança.
No momento da documentação, sua elaboração é simples, rápida, não necessita de desdobramentos, como reconhecimentos de firmas ou registros em cartórios, representando baixo custo. Basta que o título siga os requisitos essenciais e o formalismo previsto em lei e o crédito está, eficazmente, documentado. Assim, quando se vai documentar um crédito, o preenchimento de uma nota promissória, p.e., é muito mais rápido, simples e barato do que a elaboração de um contrato ou escritura.
Em caso do beneficiário do título desejar obter recursos financeiros antes mesmo do vencimento da dívida, pode ceder o crédito. A transferência de um crédito representado por um título de crédito é simples, rápida e sem custo: basta a mera entrega (tradição é o termo jurídico) ou a singela formalidade da assinatura no verso do mesmo (endosso, que veremos adiante). A cessão ou transferência de um título de crédito não exige, em geral, registros ou outras providências.
No momento da cobrança amigável, a documentação da quitação da dívida não apresenta qualquer complexidade, vez que basta a devolução do título ao devedor. E, se o pagamento da dívida não for efetuado, de modo voluntário, pelo devedor, havendo necessidade da promoção de medida judicial para compelir o cumprimento da obrigação, o título de crédito apresenta enorme vantagem sobre os demais documentos, pois que, em razão de sua existência, dispensa-se toda a fase de conhecimento da ação judicial, indo-se, diretamente, para a execução, o que abrevia o tempo e poupa recursos financeiros ao credor.
CARACTERÍSTICAS DOS TÍTULOS DE CRÉDITO
· Natureza Empresarial – tem função de promover e agilizar negócios, embora seja usado também por não-empresários;
· Rigor Formal – deve preencher formalidades legais (requisitos essenciais); a inobservância das formalidades descaracteriza a força dispositiva do documento; tem o objetivo de conferir segurança e certeza ao documento e, portanto, ao seu titular, o que facilita sua circulação;
· Equiparação a Bem Móvel – art. 82 a 84 do CC; título incorpora o direito; é o próprio direito;
· Qualidade Dispositiva do Documento – a apresentação do TC é necessária para o exercício do direito de crédito;
· Função de Circular – transferência não tem dificuldades; basta simples entrega ou entrega com endosso;
· Certeza e Liquidez da Obrigação – contém obrigação específica e líquida, ou seja, em quantia já determinada; a obrigação é certa, pois o devedor não pode recusar pagamento;
· Caráter Quesível da Obrigação – a dívida deve ser cobrada pelo credor no domicílio do devedor; título deve ser apresentado pelo credor ao devedor no vencimento para pagamento;
· Caráter Exaurível do Título – o pagamento extingue o título.
CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
O conceito predominante de título de crédito é o de Cesare Vivante: “Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado.” A natureza jurídica do título de crédito é de declaração unilateral de vontade, tendo em vista que é fruto da emanação única da vontade do devedor, que a isso não pode ser compelido, sob pena de o título ser inválido. Quando alguém se obriga através de um título de crédito, entre outras possibilidades, se submete aos princípios do direito cambiário e disso não pode se furtar.
O título gera uma obrigação. As fontes das obrigações, de acordo com a teoria geral das obrigações, são a lei, o ato ilícito e as declarações de vontade, que podem ser bilaterais ou unilaterais. Os TC são declaração unilateral de vontade, como mencionado.
PRINCÍPIOS OU ATRIBUTOS
Os títulos de crédito se originaram da prática e da necessidade material dos mercadores, passando por sucessivos aprimoramentos, o que ocorreu à medida que foram sendo reconhecidas e admitidas algumas proposições como verdadeiras, para que a funcionalidade de tais documentos fosse elevada a níveis ótimos, garantindo-lhes credibilidade e segurança.
Vamos a eles.
1. Documentalidade ou Cartularidade - O título de crédito é sempre um documento escrito. Seu registro é essencial, uma vez que é necessária a sua apresentação para o exercício do direito que ele representa. O título é a materialização do direito. Assim, quem o detém, pode cobrá-lo e, sem o título, não se pode exercer o direito, pois o documento o incorpora. A exigência da cartularidade se explica em razão da possibilidade de circulação do título, que se transmite com a tradição (entrega) do documento. Não só a documentalidade possibilita a circulação, como também a facilita, na medida em que todos os dados necessários para dar credibilidade ao título estão nele contidos. Esse princípio continua vigente e firme, mesmo no caso das duplicatas escriturais (lei nº 13.775/2018), que são aquelas criadas em sistemas eletrônicos de escrituração.
2. Incorporação – Decorre da documentalidade. O título de crédito nasce derivado de uma relação anterior entre as partes, como uma compra e venda, por exemplo. Mas, uma vez criado, emancipa-se de tal forma dessa relação precedente, de sua causa, que passa a ter existência independente. O título representa crédito determinado, certo e revestido de executividade. Se o título perde seu efeito porque prescreveu ou se extraviou ou deteriorou, o direito cambiário por ele representado se perde com ele. Em razão da incorporação, há um brocardo jurídico que diz que a posse vale o título, pois presume-se:
· se a posse é do devedor, a presunção é de que foi pago, pois presumivelmente foi resgatado;
· se a posse é do credor, presume-se que ainda não foi pago.
3. Literalidade – Dá os limites da obrigação cambiária, quanto a sua existência, conteúdo e amplitude. Sendo o título de crédito uma obrigação literal, todas as condições da dívida estão nele escritas. Vale o que está no título, quanto à quem seja do devedor, os eventuais coobrigados, a data de vencimento, a quantia, a praça de pagamento etc.. Por isso, o devedor não é obrigado a mais, nem o credor pode exigir outros direitos senão aqueles declarados no título. O princípio da literalidade está ligado à certeza e segurança da obrigação, contribuindo com a circulação, protegendo os interesses do terceiro de boa-fé.
4. Formalismo – Para dar mais certeza e segurança ao TC, o título deve conter os requisitos exigidos em lei. Essas exigências podem ser mais ou menos rigorosas, dependendo do modelo de título do qual se trate: se o título for de modelo livre, bastará conter todos os requisitos essenciais; se for de modelo vinculado, terá, ainda, que obedecer ao desenho descrito em lei.
5. Circulabilidade – Possibilidade de transferência do título, com a finalidade de facilitar operações de crédito e negócios. Para que esse objetivo seja atingido, é preciso que o documento inspire confiança, o que se consegue com a união dos demais princípios cambiários. A circulação, como se viu, dá-se por mera tradição (entrega), quando o título é ao portador, ou por endosso, quando o título for nominativo.
6. Autonomia e Abstração – Como já mencionado, o TC se desvincula do negócio que lhe dá origem, para proteger o terceiro de boa-fé e dar confiabilidade ao título. Por isso, o TC não se contamina com eventuais defeitos do negócio precedente, quando o título circula. Derivada da autonomia, surge a abstração, como um elemento processual da autonomia, pois em sua cobrança judicial (processo de execução do título), não é necessário mencionar a sua origem; é como se ele passasse a existir do nada, sem relação precedente nenhuma entre as partes. As eventuais exceções de não-pagamento relativas à relação anterior, que tenha dado causa ao nascimento do título, não podem ser alegadas em defesa contra o terceiro de boa-fé, mas, apenas, entre as partes originais do negócio precedente, ou seja, se o título não circulou.
7. Independência – Ainda para preservar a segurança e credibilidade do TC, cada uma das obrigações lançadas no documento são independentes entre si; mesmo que uma delas seja inválida, a nulidade não atingirá as demais. Então, se tivermos vários obrigados ou coobrigados num mesmo título (mais de um devedor principal, avalistas, avalistas de avalistas, sacadores, endossantes, avalistas de endossantes, p.e.) e uma das obrigações for inválida, todas as demais permanecem perfeitamente válidas.
8. Solidariedade Cambial – Como é possível que existam vários obrigados e coobrigados figurando no título, através de declarações cambiais diversas e individuais lançadas no documento, de modo independente, como vimos, opera-se o princípio da solidariedade cambial, ou seja, cada um dos coobrigados se responsabiliza pelo pagamento do título perante o credor, que pode cobrá-lo de qualquer um deles, de alguns ou de todos. A responsabilidade é direta e não subsidiária: não cabe ao coobrigado acionado, por exemplo, indicar o esgotamento dos bens do devedor principal antes de ver atingidos os seus próprios bens, não cabe benefício de ordem. Aquele que pagar o título, se não for o devedor principal, poderá cobrar o valor pago dos seus antecessores no título, terminando a cadeia de devedores, sempre no devedor principal.
9. Executividade – O TC tem força executiva, ou seja, força suficiente para servir de causa de intervenção forçada no patrimônio do devedor, para satisfazer a obrigação, sem que seja necessária prévia ação de conhecimento; a declaração da vontade do subscritor (devedor) cria um direito certo e determinado, que com o vencimento, passa a ser exigível. O devedor, quando firma, assina o título, reconhece, voluntariamente, o dever de pagar quantia certa e determinada. Essa força executiva é atribuída por lei e se liga com o formalismo e a tipicidade do TC.
(2ª PARTE)
DECLARAÇÕES CAMBIÁRIAS
A declaração cambial é a expressão da vontade do devedor ou co-devedor, que se manifesta em título de crédito com a inserção da sua assinatura.
Existem declarações cambiárias necessárias, essenciais, principais e facultativas, eventuais, acessórias. A declaração necessária (ou essencial, ou principal) diz respeito àquela sem a qual não se forma o título, é essencial. As facultativas são declarações que podem se acrescer à declaração principal ou não.
Através da aposição da assinatura no título é que a pessoa se torna obrigada ou coobrigada à dívida cambiária. Cada espécie de declaração insere uma posição jurídica distinta no título, com seus respectivos efeitos. Porém, cada posição jurídica num mesmo documento pode ser ocupada, simultaneamente, por mais de uma pessoa. Além disso, é preciso estar atento ao local em que está a assinatura no TC, pois cada declaração tem um local apropriado para ser dada.
As declarações cambiárias necessárias são o saque (ordem de pagar) e a emissão (promessa de pagar), pois dão vida ao título. Assim, o sacador e o emitente assumem a posição de devedores principais num TC. Os devedores principais devem assinar na frente do TC, logo após o texto do título.
As declarações cambiárias facultativas são o aceite, o aval e o endosso. A assinatura que signifique aceite deve ser feita na lateral esquerda do título, na vertical (na letra de câmbio) ou no canhoto de aceite (na duplicata). A assinatura do avalista deve vir abaixo da assinatura do seu avalizado. E a assinatura de endosso deve ser dada no verso (“in dorso”) do TC. Vejamos as peculiaridades de cada uma.
· Aceite – quando o TC contém uma ordem de pagar, sempre existe uma relação triangular: A pessoa “A”, que é devedora da pessoa “B”, mas é, também, credora da pessoa “C” (em geral por negócios diversos). Então, como “A” deve pagar a “B”, mas tem a receber de “C”, fica prático determinar a “C”, que pague o que deve a “A”, diretamente para “B”. Com o cumprimento da ordem de pagar dada por “A” (ou seja, quando “C” faz o pagamento a “B”), dois negócios jurídicos se resolvem: a dívida que “A” tinha com “B” e a dívida que “C” tinha com “A”. Bem, nessa circunstância, “A” (devedor de “B”, mas credor de “C”) dá a ordem de pagar; juridicamente, dizemos que ele faz o saque do TC, por isso é chamado sacador; o sacado é quem recebe a ordem e deve cumpri-la (“C”, no nosso exemplo) em favor do beneficiário, (“B” no nosso exemplo). O sacador (“A”) cria o TC, que consiste, como dito, em uma ordem de pagar, assinada por ele e dirigida ao sacado (“C”), em favor do beneficiário (“B”). Mas, nós já sabemos que o que obriga alguém cambiariamente é a sua assinatura no título. Assim, o sacado (quem deve cumprir a ordem de pagar) só se obriga quando ele mesmo lança sua assinatura no título, correspondendo à declaração de que reconhece como válida aquela ordem que lhe foi dada pelo sacador. A essa assinatura do sacado chamamos aceite, ou seja, ele aceita a ordem de pagar que lhe foi dada pelo sacador. Aceite é a declaração de reconhecimento do sacado da ordem de pagar dada pelo sacador. Caso isso ocorra, o sacador deixa a posição de principal obrigado, que passa a ser ocupada pelo sacado-aceitante. Conforme vimos no nosso exemplo, nos títulos que contêm ordem de pagar, o sacador, via de regra, deixou valores com o sacado ou tem crédito com ele. O aceite, uma vez dado, é irretratável, isto é, o aceitante não pode voltar atrás.
· Aval – É a garantia pessoal de pagamento oferecida por um terceiro em um título de crédito. Através do aval, um terceiro se responsabiliza pelo cumprimento do título, nas mesmas condições do devedor, equiparando-se a ele. É uma obrigação formal, autônoma e independente, como toda obrigação cambiária, que cria a solidariedade cambial entre avalista (garantidor) e avalizado (garantido). Se o avalista paga a obrigação do avalizado, pode cobrá-lo posteriormente. A exigência do aval é liberalidade do credor do título, que pode ou não exigi-lo. O aval é uma obrigação muito séria de ser assumida, pois pode acontecer de o devedor principal, avalizado, se liberar da obrigação e o avalista continuar vinculado a ela, já que o aval é uma obrigação autônoma e independente. O aval deve ser dado no próprio título, mediante a assinatura do garantidor na sequência da assinatura do avalizado.
· Endosso - Os títulos de crédito são criados, potencialmente, para circular, para serem transmitidos, transferidos e possibilitar a realização de vários negócios sucessivos com um único e mesmo documento, como quando alguém recebe um cheque em pagamento e “passa esse cheque para frente”, para fazer um pagamento de uma dívida sua, comprar alguma coisa, pagar um serviço etc. Se o TC é ao portador, ou seja, não menciona quem é seu beneficiário (ou seja, não se determina quem é a pessoa que receberá a quantia nele indicada), basta a tradição, a entrega do TC para que ele circule. Não há um limite no número de vezes que o TC pode circular, “ser passado para frente”. Porém, se o TC é nominal, ou seja, se nele estiver escrito o nome de quem deve recebê-lo, para que circule, é preciso que seja cumprida uma formalidade: que seja inserida uma declaração cambial do beneficiário (a pessoa cujo nome está no título) de que está transferindo o TC para outrem. Isso se materializa com a simples assinatura no verso do TC. Nesse caso, ele apenas sinalizando sua transferência, sem determinar quem deva recebê-lo, tornando, assim, um TC que era nominal, ao portador; ou pode fazê-lo em favor de alguém específico, fazendo com que continue nominal. Nesse caso, antes de assinar, deve escrever “em favor de fulano” e assinar. Essa declaração de transferência do TC é chamada de endosso. Dito de outra forma: o endosso se materializa, como todas as declarações cambiárias, através da assinatura do proprietário do título (favorecido), nele nominado, no verso do mesmo. Atenção: a simples assinatura do endossante no anverso (frente) do título vale como aval e não endosso. Quem transfere o título através de endosso é o endossante e quem o recebe em endosso é o endossatário. O endossatário, portanto, sucede o endossante na propriedade e nos direitos cambiais, mas não se vincula à relação fundamental, devido ao efeito da inoponibilidade das exceções cambiais, decorrente da autonomia do documento e sua abstração. A finalidade do endosso é permitir a circulação do documento, sinalizando, através da assinatura do endossante, que ele o cedeu para terceiro, que está em sua posse de modo legítimo, podendo exercer o direito nele contido. O endosso evidencia a boa-fé do terceiro na posse do título.
Um último lembrete referente aos vários tipos de declaração cambial: todas elas existem para dar mais credibilidade e segurança de que o título será pago. Porém, para poder cobrar de todos os coobrigados, é necessário que o portador tome a providência de protestar o título nas 24 horas seguintes ao vencimento (30 dias, para a duplicata), caso contrário, o portador estará abrindo mão de cobrar dos coobrigados e só poderá cobrar do devedor principal do título e seus avalistas, se existirem.
TÍTULOS EM ESPÉCIE: CHEQUE, NOTA PROMISSÓRIA, DUPLICATA
Existem várias espécies de título de crédito. Vamos tratar, apenas, dos mais comuns, começando pelo cheque.
O cheque contém ordem de pagamento à vista (portanto, relação triangular), sacada contra bancos ou instituições financeiras assemelhadas, em razão de provisão de fundos que o sacador possui junto ao sacado. A ordem pode ser dada a favor do próprio sacador-correntista, de terceiro ou ser sacada ao portador.
O cheque nasceu na Inglaterra, entre 1759 e 1772, quando os banqueiros de Londres inscreviam o crédito dos clientes e lhes entregavam bloquinhos contendo formulários que os clientes-credores preenchiam. No Brasil, existem desde 1845.
O cheque é regulado pela lei 7.357/85.
A ordem do sacador (correntista) pressupõe que ele deva manter fundos disponíveis em poder do sacado (banco), o que será verificado no momento da apresentação do cheque ao banco para pagamento. Por esse motivo, apesar de ser uma relação triangular, que contém ordem de pagar (o correntista dá ordem para que o banco pague a quantia determinada no cheque a quem apresentá-lo no caixa ou depositar em conta bancária), o cheque não admite aceite. Se há fundos disponíveis, o banco não pode negar-se a pagar o título; se não houver, o banco pode legitimamente recusar o pagamento. O saque de cheque sem fundos configura crime, de acordo com o artigo 171, parágrafo 2º, inciso IV do Código Penal.
A peculiaridade do cheque em relação aos demais títulos que contém ordem de pagar, é que, naquele, a responsabilidade pelo pagamento é do sacador (correntista) e não do sacado (banco). O artigo 15 da lei do cheque prevê que a responsabilidade pelo pagamento é do sacador (erroneamente chamado de emitente na lei). Por isso, quando o cheque não é pago, a ação executiva deve ser proposta em face do sacador-emitente e não do sacado-banco.
O cheque é pagável à vista, considerando-se não escrita qualquer menção em contrário. Por isso, o cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de saque (emissão na terminologia errônea da lei), é pagável no dia da apresentação (art. 32).
São requisitos específicos do cheque:
1- a denominação cheque;
2- a ordem incondicional de pagar;
3- a quantia determinada;
4- o nome do banco ou instituição financeira a quem é dirigida;
5- a data do saque;
6- o lugar do saque;
7- a assinatura do sacador-correntista.
O cheque é TC de modelo vinculado, ou seja, tem que seguir um desenho estabelecido em lei; por isso os cheques de todos os bancos são praticamente idênticos, mudando só o fundo: o tamanho da folha, a ordem em que aparecem as informações, tudo está determinado por lei.
Cabe ao sacado (banco) verificar a autenticidade da assinatura para pagamento do cheque. Mas o correntista é responsável pela guarda do talonário de cheques, não podendo ser negligente em relação a tal dever.
O cheque deve ser apresentado para pagamento em 30 dias (cheque da praça) ou 60 dias (cheque de outra praça). A questão do prazo de apresentação é importante porque, é do dia seguinte ao seu encerramento que começa a correr o prazo de prescrição do título, que é seis meses. Por exemplo: um cheque de Poços de Caldas usado na mesma cidade, sacado no dia 21 de agosto, deve ser apresentado para cobrança bancária até o dia 20 de setembro (30 dias; não um mês. Atenção!) Se esse mesmo cheque de Poços de Caldas for usado na cidade de São Paulo, no dia 21 de agosto, o beneficiário deverá apresentá-lo para pagamento ao banco até o dia 20 de outubro (60 dias; não dois meses). O prazo de apresentação ainda é importante por outro motivo: o direito de regresso contra os eventuais coobrigados do cheque. Se o título for apresentado ao banco depois do prazo legal (apresentação tardia), embora não prejudique o pagamento do título se houver fundos disponíveis, libera os coobrigados (endossantes e seus avalistas).
O cheque pós-datado (ou pré-datado) não é reconhecido pela lei, pois cheque é ordem de pagamento à vista. Qualquer escrito em contrário ao pagamento à vista, no cheque, é ineficaz. A maior prova disso é que será pago pelo banco assim que apresentado, se houver fundos. Se não houver, será devolvido.
Porém, saindo do direito cambiário, o cheque pós-datado representa um acordo entre as partes da relação extracartular (uma compra e venda, por exemplo), impondo uma obrigação de não-fazer assumida pelo beneficiário. Nesse sentido, pelo artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor[1], se um comerciante inserir em sua propaganda que aceita “cheque pré”, a oferta obriga o fornecedor e se comprovada a quebra desse contrato por parte do credor-fornecedor que apresente o cheque para cobrança antes do prazo combinado, este deverá indenizar o devedor-comprador pelos juros e encargos derivados da utilização de crédito aberto pelo banco sacado. Porém, frise-se que, cambiariamente, o cheque continua sendo ordem de pagamento à vista, tanto é que é pago ou devolvido e por esses motivos é que o consumidor será indenizado.
Passamos, agora, a expor os principais aspectos da nota promissória, título de crédito que contém promessa de pagamento emitida pelo próprio devedor. Nesse título, há apenas duas figuras intervenientes obrigatórias: o emitente, devedor na relação precedente e na cambial, e o beneficiário, credor na relação precedente e na cambial. Além desses intervenientes, a nota promissória admite as declarações de aval e endosso, se for o caso.
Por sua simplicidade, a nota promissória vem sendo utilizada para representar débitos globais, cujo pagamento vai sendo feito de modo parcelado. Assim, podem ser emitidas tantas promissórias quantas sejam as parcelas devidas e por ocasião do pagamento de cada uma, vão sendo resgatadas individualmente. Mas, é também usual que se emita uma única nota e que os pagamentos parciais nela sejam anotados, ficando de posse do credor, até que seja efetuado o pagamento total da quantia, quando é devolvida ao emitente.
Com certa frequência, se encontram notas promissórias emitidas em branco, em relações negociais continuadas entre as partes, com pagamentos sucessivos e novas aberturas consecutivas de crédito. Nesses casos, o título em branco fica de posse do credor que só o preencherá se cessarem de modo injustificado os pagamentos, para cobrança do eventual saldo devedor em aberto. Lembramos que apenas a assinatura do emitente é indispensável de ser posta no título no momento da emissão. Os demais dados podem ser preenchidos pelo portador, nas condições combinadas entre as partes. É que o emitente aceita as omissões quando assina, celebrando o chamado contrato de preenchimento, o que só se dará se necessária a cobrança da nota.
A NP é título de modelo livre e seus requisitos específicos de validade são:
1- a denominação nota promissória ou termo correspondente;
2- a quantia em dinheiro a ser paga;
3- o nome do beneficiário a quem deverá ser paga;
4- o nome do emitente;
5- a assinatura do emitente;
6- o vencimento;
7- a praça de pagamento;
8- a data de emissão;
9- a praça de emissão.
A NP é um título bastante simples, por isso continua bastante usual.
O terceiro título que mencionaremos é a duplicata, uma criação do direito brasileiro. É título que nasce, obrigatoriamente, de negócio de compra e venda mercantil, disciplinado pela lei 5.474/68 (e lei nº 13.775/2018, no caso das duplicatas escriturais, eletrônicas). Ela deriva de uma fatura, que é a nota do vendedor contendo a lista discriminada dos produtos ou serviços, sua qualidade, quantidade e preço. A fatura é de emissão obrigatória na compra e venda mercantil[2] a crédito, com prazo de pagamento não inferior a trinta dias, realizada entre partes domiciliadas no território nacional, com base no pedido do cliente. Nessas condições, permite-se ao vendedor extrair uma duplicata para viabilizar a circulação do crédito.
A adoção do regime de vendas mercantis a prazo superior a trinta dias com criação de duplicatas obriga o empresário vendedor a manter escrituração especial de livro de registro de duplicatas, no qual deverá ser feito o registro cronológico dos títulos criados, com número de ordem, data, valor, nome e domicílio do comprador e eventuais peculiaridades, como a prorrogação do vencimento, p.e.. As regras próprias da escrituração mercantil devem ser aplicadas ao registro de duplicatas.
Como a duplicata é de criação do vendedor (sacador) e o comprador (sacado) tem que dar o seu aceite. E como todo título que contém ordem de pagar, pressupõe a existência de três figuras intervenientes: o sacador, vendedor-credor na relação de compra e venda mercantil; o sacado, comprador-devedor na relação de compra e venda mercantil, a quem cabe o aceite; e o tomador, a beneficiário a quem deve ser feito o pagamento pelo sacado-aceitante, que poderá ser o próprio vendedor ou um terceiro por ele indicado.
Respeitando o rigor cambial, a duplicata mercantil é título de modelo vinculado e deve conter os seguintes requisitos específicos:
1- a denominação duplicata;
2- a data de emissão
3- o número de ordem;
4- o número da fatura que a originou;
5- o vencimento;
6- o nome do vendedor (sacador);
7- o domicílio do vendedor (sacador);
8- o nome do comprador (sacado);
9- o domicílio do comprador (sacado);
10- a importância a pagar em algarismos e por extenso;
11- a praça de pagamento;
12- a cláusula à ordem;
13- o aceite do sacado-comprador;
14- a assinatura do sacador-vendedor.
Como mencionado, por conter ordem de pagar, a duplicata deve ser apresentada para aceite ao sacado-comprador, dentro de 30 dias a contar do saque. A recusa do aceite na duplicata só pode ser feita pelo sacado-comprador nos seguintes casos:
· se a mercadoria estiver avariada;
· se a mercadoria não foi recebida;
· se a mercadoria apresentar vício ou defeito;
· se a mercadoria entregue estiver discrepante em qualidade ou quantidade, devidamente comprovada, com o pedido;
· se houver divergência nos prazos de entrega e
· se houver divergência no valor constante da duplicata e o preço ajustado na compra e venda.
[1] CDC, art. 30 – “Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.”
[2] A compra e venda mercantil se caracteriza, fundamentalmente, por ao menos uma das partes, comprador ou vendedor, ser empresário.